inconclusões, mas a caminho de algum lugar

sobre a educação e seu futuro, duas avaliações brasileiras:
_________________________________________________________
O tamanho do Brasil pobre
Bolsa-Família não basta: é preciso casa, emprego e, principalmente, educação

___________________________________________________________

Pedro Doria
Em 2005, 7,5 milhões de famílias eram atendidas pelo Bolsa- Família. O número atual chega a 11 milhões de famílias, ou mais de 45 milhões de brasileiros, quase um quarto da população. Um em cada dois nordestinos é atendido pelo programa. “É muita gente, sim”, diz a professora Sônia Draibe. “Este é o tamanho do Brasil pobre.”

A professora é uma enciclopédia de políticas sociais. Não cita uma política do governo brasileiro, seja atual ou seja passado, sem compará-la com o que foi feito em algum outro país. Às vezes o Brasil se sai bem: “Temos uma cobertura previdenciária maior que a do México”; na maioria das vezes, sai-se mal.

Isso acontece principalmente quando a questão é educação. “Não temos muito o que fazer pelos adultos atendidos pelo Bolsa-Família, mas para os jovens há esperança”, diz ela. Não que as políticas deste governo ou do anterior tenham atacado as raízes do problema. “Nos anos 60, os EUA fizeram políticas parecidas, mas a escola estava envolvida, os professores se dedicavam mais aos alunos assistidos pelo programa social”, explica.

Para Sônia Draibe, o programa estimula algo que já acontecia - a presença na escola -, mas não é eficaz em garantir rendimento escolar. “O que explica que um país com nosso nível de desenvolvimento tenha chegado a este ponto educacional?”, ela se pergunta, para responder em seguida: “Nada.” E provoca: “Estamos fazendo algo para tirar esta nova geração da pobreza?”. Segundo ela, não.

O Bolsa-Família alcança um quarto da população. Isso é demais?

Um quarto é muito, sim. Mas este é o tamanho do Brasil pobre. Isso tem a ver com nossas heranças e tem a ver com nossa política social e econômica atual.

Como explicar que a pobreza esteja na cidade e não no campo?

Entre as décadas de 50 e 70, 40 milhões de pessoas migraram para as cidades. É uma Argentina inteira em 30 anos. Imagine a estrutura urbana e de serviços sociais que é preciso construir com rapidez para admitir um mínimo de decência para a vida. A urbanização acelerada, fruto da industrialização, desenvolveu o País. Como em todo o mundo, sistemas de proteção social foram erguidos nesse período de urbanização para substituir as antigas formas de proteção comunitárias do campo, que não funcionavam mais. No Brasil, quando a ditadura terminou, tínhamos uma cobertura de Previdência Social maior do que a do México, uma vasta rede de hospitais que pertenciam ao Inamps, muitas escolas. Se formos comparar com outros países de médio e baixo desenvolvimento, tínhamos uma infra-estrutura razoável, embora produzindo resultados ruins.

O que se fez para enfrentar esse problema?

O governo Itamar Franco foi o primeiro a ensaiar uma política de combate à pobreza. Mas foi o Comunidade Solidária, no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, que procurou atacar o problema, melhorando a oferta de serviços que podiam ter impacto sobre os pobres - educação básica, vacinação, leite para as crianças, posto de saúde, pré-natal. Mas não havia, ainda, transferência monetária.

Há críticas ao repasse de dinheiro.

Isso sempre foi polêmico no Brasil. Em outros países não é assim, mas aqui sempre houve resistência, tanto entre conservadores quanto entre progressistas. Quando eu estava na faculdade, diziam: “A primeira coisa que o pobre fará com esse dinheiro é comprar pinga”. Depois não era mais pinga, diziam que compraria radinho de pilha. Supunha-se que o pessoal com menos educação não usaria bem o dinheiro.

Faz sentido essa resistência?

Não. Na década de 1980, o governo Franco Montoro, em São Paulo, criou um programa que repassava dinheiro às famílias que recebiam seus filhos vindos da Febem. Como o dinheiro era pouco, essas famílias juntavam tudo num bolo e cada mês faziam um mutirão na casa de uma. Ou então poupavam por uns meses para comprar um carrinho de pipoca para aquele rapaz que agora precisaria trabalhar. Ao mesmo tempo, outros programas, que forneciam recursos, fracassavam por não levar em consideração hábitos regionais. Aqui em São Paulo, por exemplo, distribuíram feijão preto, que só é consumido no Rio. As pessoas jogavam fora.

Como foram os projetos de transferência de renda com FHC?

O primeiro dos projetos federais de transferência monetária foi o Bolsa-Escola, que teve uma implementação muito difícil. Havia muita tensão com a equipe econômica e a fiscalização da contrapartida para a transferência - a freqüência às aulas - sempre foi difícil. Muitos municípios não tinham condições de fazê-lo. Em 2000, o Congresso aprovou a criação daquilo que o governo tentou evitar no início, que é um Fundo de Pobreza, vinculado à CPMF. Foi isso que passou a financiar o Bolsa-Escola, o Bolsa-Alimentação, o Vale-Gás e outros programas menores.

Em que o Bolsa-Família é um programa diferente?

Até 2002, o Bolsa-Escola estava no Ministério da Educação, o Alimentação, no Ministério da Saúde, e assim por diante. O governo Lula juntou todos os que havia, mais aquele que criou, o Fome Zero, e tirou das áreas técnicas, passando para os cuidados da Casa Civil e, depois, do Ministério de Desenvolvimento Social. Já havia um projeto de juntar tudo. Você fornece um só cartão magnético, o que é mais racional. Mas tirar das áreas técnicas e mudar o nome é ruim. Quando você chama de Bolsa-Escola, está clara a obrigação das famílias de fazer as crianças freqüentarem a escola. Quando chama de Bolsa-Família, essa ligação desaparece.

Então essa é uma falha do governo Lula?

O governo Lula expandiu o auxílio, o que é correto. Mas o que nem o projeto dele nem o do governo anterior têm é aquilo que havia no programa de incentivo à educação patrocinado pelo governo Lyndon Johnson, nos EUA. O dinheiro vinha, mas as escolas estavam envolvidas. Do diretor aos professores, todos davam atenção especial ao aluno bolsista. No governo Cristovam Buarque, no DF, ele tentou fazer isso. É preciso criar um mecanismo para envolver mais as escolas, os postos de saúde. Mas isso não aconteceu.

Resolveria o problema da pobreza?

O objetivo é interromper o ciclo vicioso da pobreza, via educação e saúde, nas gerações mais novas. Então temos que nos perguntar se esse formato de programa vai atender melhor o Brasil. A tradição brasileira é que, na faixa dos 7 aos 14 anos, a maioria das crianças esteja na escola, com programa ou sem programa. Eles repetem muito, saem da escola, voltam. Chegam aos 14 na 2ª série. O programa de bolsas melhorou um pouco a freqüência, mas não muito. Onde encontramos crianças e adolescentes fora da escola? Na pré-escola e depois dos 15 anos. Aí tem muita gente fora. Agora o governo está reforçando o investimento na faixa de 15 a 18 anos. O México, por exemplo, paga um valor diferente para cada fase da escola. Até a 3ª série é um valor, daí à 8ª é outro e, no ensino médio, o valor compete com um salário no mercado de trabalho. Porque, assim, o programa vai incentivando a progressão escolar.

Há perigo de clientelismo?

Com manipulação ou não, o ganho eleitoral com esse tipo de política é sempre muito forte. Se você pegar a curva de distribuição do Bolsa-Família, verá que o programa, entre março e outubro do ano da reeleição de Lula (2005) passou a atender de 7 milhões a 11,2 milhões de pessoas. Não é só o PT que faz isso e esse é um risco da democracia.

Quanto dessa distribuição de renda está sendo às custas dos setores médios da sociedade em lugar dos mais ricos?

Há um estudo da Unicamp que analisa a distribuição de renda por profissão. Quando você vê aquelas típicas da classe média, percebe que há um enxugamento muito grande e isso altera a redistribuição, já que diminui a distância entre o pobre e a classe média. Mas não quer dizer que o Bolsa-Família seja às custas da classe média. O empobrecimento dos setores médios vem de baixos salários e desemprego. Faltam crescimento econômico e políticas de emprego.

O que mais falta ao Brasil?

É preciso democratizar o crédito. Isso é política redistributiva, também. Não temos política de moradia: há um déficit de 12 milhões de habitações. Agora, se tirar essas bolsas, o que acontece? Volta tudo ao que era. Não há muito como capacitar os adultos, mas há esperança para os jovens. Mais grave que a má distribuição de renda é o problema da educação. Pessoalmente, já não sei mais nem onde encontrar explicação. Só estamos melhores, hoje, em educação, do que a Bolívia e talvez o Paraguai, na América do Sul. O que explica que um país com nosso nível de desenvolvimento tenha chegado a esse ponto? Nada. Apenas 60% dos meninos com idade de ensino médio vão à escola. Chile e Argentina estavam assim em 1970. Hoje estão nos 90%. O México também está melhor que nós. Estamos fazendo algo para esta geração que desejamos tirar da pobreza? Este programa não é suficiente. Estamos ajudando a sustentar um quarto da população, o que não é pouco. Mas como vai ser o futuro deste país?

GILBERTO DIMENSTEIN

Reféns dos filhos
________________________________________
O Bolsa Família funciona como uma reparação de guerra de uma nação, lamento dizer, de derrotados
________________________________________
MAIS UMA BOLSA a caminho. Está previsto para o dia 5 de setembro o anúncio do governo federal da distribuição de dinheiro diretamente aos jovens de 15 a 17 anos, desde que freqüentem a escola. Imagina-se que, assim, eles não venham a engrossar as estatísticas educacionais de evasão escolar e que tenham chance de obter um emprego no futuro. Faz sentido?
Podemos levantar uma série de dúvidas sobre até que ponto mais dois ou três anos em uma escola ruim ajudariam alguém a obter um emprego, especialmente nas regiões metropolitanas, nas quais se exige mão-de-obra mais preparada. Mas não se pode negar que o novo benefício faça sentido se o objetivo final das bolsas é dar autonomia aos indivíduos, não fazê-los eternamente dependentes de assistência pública.
Na semana passada, o governo federal divulgou balanço sobre o Bolsa Família, com reluzentes números: mais de 41 milhões de pessoas beneficiadas, o que representa a maior parte da população com menor poder aquisitivo. Ao ler o perfil dos beneficiários, tem-se a satisfação de ver que os recursos vão mesmo para quem mais precisa, mas é inevitável a conclusão de estar nascendo uma multidão de pais e mães reféns dos filhos que fazem da paternidade uma profissão. O que acontecerá quando as crianças crescerem e os pais perderem a fonte de renda?


O governo alega que está em andamento a articulação de uma série de programas de diferentes ministérios para que se ofereça uma porta de saída, ou seja, condições de o indivíduo não depender mais de favores oficiais. Fala-se em juntar vários projetos, desde as aulas de alfabetização, passando pelo microcrédito, até a capacitação profissional. Mesmo que esses programas sejam bons, quantos indivíduos sempre serão dependentes?
Certamente não interessa ao governo dar com clareza a resposta. O perfil divulgado dos beneficiários das bolsas sugere que, para muitos deles, dificilmente haverá porta de saída. Expressiva maioria deles são de adultos incapazes de ler e entender um texto simples. Há uma quantidade gigantesca de mulheres chefes de família com muitos filhos.
Isso sem contar as multidões de brasileiros, cujo acúmulo de doenças não tratadas fez que perdessem as condições necessárias de saúde para manter um emprego. Mesmo com o crescimento das oportunidades de emprego, pessoas com tais carências têm dificuldades de entrar no mercado formal de trabalho. Isso significa que o Bolsa Família não presta? Não, mas significa que não estão contando toda a verdade.


É evidente que não se deve deter o esforço de garantir a autonomia dos 11 milhões de famílias que recebem as bolsas. Articular diferentes ações nos âmbitos federal, estadual e municipal, auxiliando na capacitação profissional, certamente trará efeitos positivos. A experiência mostra que, quanto mais e melhor se fizerem os chamados arranjos educativos, aproveitando as vocações econômicas locais, maior será a chance de emprego. O somatório dos pequenos arranjos, espalhados pelos municípios, vai tirar gente daquela lista dos 11 milhões de famílias.
Para os adultos, o Bolsa Família é simplesmente uma redução de danos. E, aí, funciona bem. Como o dinheiro vai mesmo para os mais pobres, aumentou o consumo de alimentos, ativaram-se comércios locais e melhorou a distribuição de renda. Pesquisadores começam a perceber mudança no fluxo migratório, já que as famílias teriam mais condições de ficar em suas cidades.
Evita-se que sejam obrigadas a viver nas favelas urbanas à procura de algum bico, vítimas da violência. Há indícios até mesmo de volta dos migrantes para sua terra.
O problema é que se paga uma conta passada de uma série de omissões que vão da falta de atenção ao ensino básico, passando pela pouca seriedade nos planos de irrigação, até a pouca oferta de planejamento familiar. O Bolsa Família funciona, então, como uma espécie de reparação de guerra de uma nação, lamento dizer, de derrotados.


Dá para apostar - daí o sentido da bolsa para os jovens de 15 a 17 anos- menos nos pais do que nos filhos do Bolsa Família, desde que recebam educação com um mínimo de qualidade. Pela primeira vez em nossa história, transformou-se em consenso a idéia tão óbvia de que a porta de saída começa no berço. Fora disso, é só redução de danos.


PS - Um dos piores exemplos sociais brasileiros está na cidade de São Paulo, onde se criou o "turno da fome". Por falta de espaço, os estudantes ficam na sala de aula na hora do almoço. Mas, do vexame, vemos surgir a força das lideranças locais. Em vez de esperar pela construção de novas escolas ou salas, diretores e professores reuniram-se para discutir a ocupação do espaço e foram achando pequenas soluções. Sem gastar, conseguiram tirar 114 mil crianças do turno da fome e elas começaram a ter uma hora a mais de aula por dia. A porta de saída para o desenvolvimento social brasileiro é a engenhosidade comunitária.

Comments

Popular Posts