calligaris e as crianças

CONTARDO CALIGARIS 

Pesquisas de grupo 



Queremos ver as crianças felizes e jocosas. Portanto, nós preferimos emburrecê-las a aborrecê-las


FRANCISCO, 8, anuncia: "Preciso fazer uma pesquisa para um projeto de grupo sobre a China".
Encarregado das ilustrações, Francisco "pesquisa" no Google Imagens.
A impressora está em pane; alguém leva Francisco e seu pen-drive para a casa da tia, a qual interrompe seu jantar para imprimir os arquivos.
Em menos tempo (e sem mobilização familiar), Francisco poderia ter memorizado três boas páginas sobre a China, seus costumes, sua história etc.
Há 20 anos, como pai, padrasto, professor e terapeuta, sou perseguido pelas "pesquisas de grupo".
A moda do trabalho escolar em grupo evoca, aos meus ouvidos, a fala de colegas que, nos anos 70, improvisavam grupos terapêuticos. Os tempos são duros, eles diziam, e o paciente pagará a metade do que custa uma sessão individual.
De fato, a terapia de grupo não é uma espécie de excursão de ônibus (mais barata para os turistas e mais rentável para o cicerone): ao contrário, ela é uma forma específica de terapia, na qual a dinâmica do grupo mobiliza aspectos da subjetividade que seriam de acesso e manejo árduos numa terapia individual.
Ou seja, na terapia de grupo, a existência do grupo permite algo que aconteceria mais dificilmente numa terapia individual.
Será que o mesmo não deveria valer para os trabalhos em grupo nas escolas? O trabalho em grupo só se justificaria se ele permitir que o aluno tenha uma experiência diferente, mais rica da que é proporcionada pelo trabalho individual.
Alguns dirão que isso é o que acontece: o trabalho em grupo promove uma socialização que é crucial para a criança. Poderia responder que um pouco de solidão garante o silêncio necessário para que o aluno desenvolva uma vida interior.
Mas a questão é esta: quantos professores têm a competência e o entusiasmo pedagógicos necessários para propor um trabalho de grupo que não seja apenas uma excursão mais barata por ser de ônibus?
Também faz 20 anos que ouço crianças anunciando que seu dever de casa é uma "pesquisa" - nas enciclopédias, nas revistas, nos livros dos pais, nas bibliotecas, na internet e no Google.
Ora, procurar uma palavra num dicionário, numa enciclopédia ou no Google, é, justamente, uma procura -não é uma pesquisa.
Ler dez, 20 ou mesmo 50 livros sobre um tema não é pesquisar, é apenas se informar e estudar.
Se, a partir dessas leituras, alguém costurar uma nova interpretação dos fatos, essa engenharia do pensamento será suficiente para um trabalho de conclusão de curso, para uma dissertação de mestrado e até para uma tese de doutorado, mas ainda não será propriamente pesquisa.
Fazer pesquisa significa produzir (ou almejar produzir) um saber novo, inédito.
Imaginemos que Francisco, depois de passear pelo Google, leia dez livros sobre a visão da China pelos primeiros que viajaram para lá.
Isso seria estudo, não pesquisa. Agora imaginemos que, ao longo dessas leituras, ele se pergunte quais relatos de primeiros viajantes fossem conhecidos por Marco Polo.
Francisco poderia ir a Veneza e vasculhar a Biblioteca Marciana ou o Archivo di Stato até encontrar o testamento de Marco Polo, no qual o explorador talvez tivesse listado seus livros mais preciosos.
Essa, sim, seria uma pesquisa (aviso, para evitar viagens inúteis: o testamento de Marco Polo já foi encontrado há tempos).
Resta a pergunta: por que diabos, aparentemente, gostamos de convencer nossas crianças de que uma procura no Google seria pesquisa?
Por que diabos encorajamos trabalhos em grupo que são apenas maneiras de dividir as tarefas e minimizar o esforço? Por que, em geral, exigimos cada vez menos de nossas crianças?
A resposta usual (e certeira) é a seguinte: amamos nossas crianças como continuações de nós mesmos. Para compensar nossas frustrações, queremos vê-las continuamente saltitantes e jocosas. Portanto, preferimos emburrecê-las a aborrecê-las.
Mas é preciso completar essa resposta. Amamos as crianças porque elas poderão corrigir nossa vida quando não estivermos mais aqui.
É impossível que esse tipo de amor não seja contaminado por uma ambivalência, pois a vida futura das crianças é o símbolo de nossa mortalidade.
Nossa inveja (mais ou menos raivosa) pode, por exemplo, expressar-se assim: tudo bem, as crianças nos sobreviverão, só que a sua vida será inculta e chata -bem-feito, quem mandou não morrer com a gente? 

ccalligari@uol.com.br

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