fertilidade e terror/ douglas garcia alves jr.
Mais recente filme de Michael Haneke, A fita branca é um refinado exercício de tematização de questões teológicas, sociológicas, éticas e estéticas. É possível recolher alguns desses aspectos a partir de palavras que são ditas pelos personagens dos filmes, em seu idioma original, o alemão. Palavras que contêm uma imensa carga de sentido que deve ser recuperada, para que se tenha consciência da riqueza do filme do austríaco.
O pastor, o médico, o senhor de terras, o professor – figuras de autoridade, de responsabilidade, Verantwortung, que ocupam o duplo ofício de cuidar, sorgen, das crianças (e doentes, e mulheres, e braços da lavoura), e também pôr os freios, castigar/corrigir, bestrafen. As primeiras palavras remetem ao universo sublime da filosofia (a autonomia kantiana e o cuidado do Dasein heideggeriano), enquanto a última alude ao inferno da colônia penal (Strafkolonie), de Kafka.
O espectador é apresentado a essas figuras ambíguas, e impedido de ter qualquer identificação com elas – exceto com a figura do professor, não por acaso, intimamente ligado à esfera “espiritual”, à música, e que é encarregado pelo cineasta de ser o “narrador” da história, um narrador que, já idoso, reconstitui os fatos que abalaram, um ano antes da Primeira Guerra, a ordem (apenas aparente, como se constatará) da pequena comunidade alemã.
O espectador vê e não vê. O “olhar” da câmara é distanciado, nas tomadas externas, com escassa movimentação. Nas tomadas de interiores repete-se a tendência à economia de movimentos, que é intensificada pelas longas pausas em que se vê apenas um corredor, uma porta fechada, uma janela. O efeito dessa forma é a sugestão de que o que é visto não é deformado pela perspectiva de nenhum personagem, nem mesmo do professor/narrador. O espectador não vê a criança sendo castigada com vara pelo pai/pastor. Ele não vê os momentos em que acontecem as agressões misteriosas que abalam a comunidade.
O único momento em que o “olhar” da câmara se acopla ao olhar de um personagem é a cena em que uma criança observa, entre fascínio e temor, o cadáver de uma mulher. O personagem retira o lenço que cobre o rosto da morta, como se para testar se ela poderia, ainda, voltar a retribuir o olhar.
A busca da pureza, Reinheit, e da inocência, Unschuld, é simbolizada pela fita branca amarrada às vestes dos filhos do pastor, e pela brancura da neve que cobre a paisagem de inverno. Na perspectiva moderna do iluminismo, a de Kant, a pureza (da Crítica da razão pura) alude à autonomia da razão, alcançada por meio da diferenciação dos motivos morais em relação aos instrumentais e aos afetivos. Na perspectiva cristã, a inocência é tida como estado impossível de ser atingido pela criatura humana, separada infinitamente do criador, e dependente de seu amor e sua eleição à graça. Novamente, expõe-se a ambiguidade do formar para a pureza/castigar a desgraça da impossibilidade da inocência.
A malignidade da criança, insinuada pela atitude de alguns personagens do filme, especialmente o do pastor, é assumida pela moral cristã como índice da resistência da condição original de pecado de toda criatura, que cumpre expor e reprimir, para a elevação do espírito ao amor de deus-pai. Escreve Santo Agostinho, nas Confissões: “A inocência das crianças reside na fragilidade dos membros, não na alma. Vi e observei bem uma criança dominada pela inveja: não falava ainda, mas olhava, pálida e incitada, para seu irmão de leite [...] sem dúvida não é inocente a criança que, diante da fonte generosa e abundante de leite, não admite dividi-la com um irmão embora muito necessitado desse alimento para sustentar a vida” (Livro I, 11).
Violência odiosa
A colheita destruída com ódio é uma das cenas mais fortes do filme. Os versos de Drummond – “Onde não há jardim, as flores nascem de um/ secreto investimento em formas improváveis” – falam da criação a partir de um mínimo de vida, de espírito. A violência odiosa contra as mais frágeis das criaturas: um pássaro, uma criança reveste-se da significação de um gesto desesperado de procura de alargamento das potências de vida, sufocadas sob uma ordem geral que não é mais fértil, nem sagrada, nem respeitosa com a fragilidade das suas criaturas.
A infertilidade é um dos mais poderosos símbolos do filme. Ela aparece em negativo, na fertilidade dos habitantes da aldeia, com seus numerosos filhos. Ela aparece, de forma mais direta, na figura do cadáver, exposto à observação. Nesse quadro geral, o anúncio do assassinato do príncipe do império austro-húngaro aparece como um signo de violência simultaneamente destruidora e libertadora. É como se os eventos na aldeia fossem uma alegoria do que se seguiria em escala histórica.
A luz, em A fita branca, ou é a fraca luz das velas e lampiões que iluminam os interiores, dos mais sombrios já mostrados no cinema; ou é a luz ofuscante da paisagem campestre, chapada, sob a qual o olho demora a encontrar referência e distinção. Esse tratamento da luz parece aludir à ideia de um criador egoísta e distante, que esmaga suas criaturas sob o peso de exigências impossíveis de cumprir. Não contente com isso, ele toma posse tanto de seus corpos quanto de seus espíritos, ao lograr que elas interiorizem a necessidade do mal e da repressão. Esse motivo, simultaneamente teológico e político, anuncia a dissolução de uma ordem nada inocente.
Por último, Vertrauen, confiança/crédito. A cena se passa entre os dois jovens noivos. O professor propõe um desvio de rota à pequena carroça, um passeio à beira do lago. A noiva resiste, com medo. “Por acaso eu faria mal a minha futura mulher?”, reage o rapaz. A moça, alegre, cede à confiança. Único gesto de confiança em meio a um universo de ódios dissimulados – alguns, nem tanto – e ressentimentos cultivados com obstinação. A confiança só é possível como promessa sem garantias últimas, entre dois igualmente frágeis seres humanos.
Douglas Garcia Alves Júnior é professor de estética e antropologia filosófica do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop)
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