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Mapas além-Google
Por Giselle Beiguelman
Em “Sur-viv-all’’, Andre Lemos combina GPS, fotos e vídeos para “escrever” uma cidade canadense e questionar as mídias locativas
Se você ainda tinha dúvidas sobre a possibilidade de falar e pensar em narrativas nômades, “Sur-viv-all’’, de Andre Lemos, vai acabar com elas. Combinando recursos de mapeamento on line, GPS, fotos e vídeos, Andre, que é professor da UFBA e pós-doutorando da Universidade de Alberta (Canadá), produziu um interessante discurso crítico sobre a cidade contemporânea como espaço de fluxo e historicidade transitória.
O nome do projeto “Sur-viv-all’’ é um trocadilho “nomádico”, locativo e narrativo. A palavra "survival’’ foi transformada em "Sur-viv-all," tentando criar sentidos diferentes em inglês e em francês, as línguas oficiais do Canadá, e em português, a língua-mãe de Andre.
Em francês, podemos inferir na palavra a idéia de “Sur viv( r)e/vie’’ algo como “um excesso e uma falta da vida, algo que ocorreu apenas quando a sobrevivência é o mínimo e o último recurso da existência”, diz Andre.
Em português, para o autor, o que fica é o "Viva", reivindicando viver, um imperativo. Já em "survival”, em inglês, ainda segundo Andre, aparece o sentido original da palavra -sobrevivência-, porém maximizado pelo “all’’ (tudo).
A idéia, conta ele em seu site, veio do cruzamento de sua leitura do livro “Survival”, de Margaret Atwood, com a pesquisa que desenvolve sobre mídias locativas, cidade, mobilidade e novas tecnologias.
Nesse livro, segundo Andre, a autora defende a tese que o enfrentamento com a questão da sobrevivência é um padrão na imaginação da literatura canadense, que lida, em geral, com a luta com as forças da natureza, dos nativos e dos animais.
Contemporizando e contextualizando essa reflexão sobre a sobrevivência com sua pesquisa sobre mídias locativas, Andre “planeja-escreve” a cidade de Edmonton, onde está fazendo seu pós-doutorado, com um rastreador baseado em GPS. O GPS é utilizado para marcar em mapas on-line (como iStumbler, Google Earth e Google maps) e hotspots (pontos com wi-fi, redes sem-fio).
“O que eu procurava aqui era uma maneira de estar mais perto da cidade, compreender e sentir seus espaços, sua dinâmica. Uma maneira de ver minha ‘sobrevivência’ aqui. O que está na base de tudo é a imaginação sobre a cidade, o relacionamento com temperaturas extremas, o uso dos carros como forma de deslocamento padrão, os espaços vazios, a invisibilidade dos processos eletrônicos nas estruturas reais do espaço público”, diz ele no website do projeto.
São inegáveis os desdobramentos da explosão dos novos formatos de mapeamento e localização que se abrem com a popularização dos GPSs e a acessibilidade dos mapas on-line. Tudo isso, no entanto, aponta para novas dinâmicas geopolíticas e para certa redundância estética, em que se patina na utopia de um mapa na escala 1:1, como um dia sonhou o triste personagem borgeano de “Do Rigor na Ciência”.
Nesse minúsculo conto, Borges escreveu:
“Naquele Império, a arte da Cartografia atingiu uma tal perfeição que o mapa duma só província ocupava toda uma cidade, e o mapa do Império, toda uma província. Com o tempo, esses mapas desmedidos não satisfizeram, e os colégios de cartógrafos levantaram um mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos apegadas ao estudo da Cartografia, as gerações seguintes entenderam que esse extenso mapa era inútil e não sem impiedade o entregaram às inclemências do Sol e dos invernos. Nos desertos do Oeste subsistem despedaçadas ruínas do mapa, habitadas por animais e por mendigos. Em todo país não resta outra relíquia das disciplinas geográficas (Suárez Miranda, “Viagens de Varões Prudentes’’, livro quarto, cap. XIV, 1658)’’.
Leia a seguir a entrevista de André Lemos à Trópico, feita por e-mail, acesse a documentação do projeto no “link-se’’, no final deste artigo, e boa viagem.
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A variedade de saberes envolvidos no seu projeto faz pensar que é conceitualmente inoperante insistir na definição do que é objeto do campo da comunicação, da arte, da tecnologia etc. Você situaria seu projeto em algum campo específico do conhecimento ou está na hora de abolirmos essas categorias estanques?
Andre Lemos: Acho que meu projeto tem um viés artístico, já que é metafórico, cruza com a literatura, não tem pretensões de provar nada e foi feito como uma catarse da minha experiência nas "praries", no Oeste do Canadá. É, por assim dizer, estético.
Não tenho pretensões artísticas e fiz para me divertir e "marcar" a cidade, deixar o meu "traço" por lá. O que está em seu fundo, no entanto, é a minha preocupação teórica com a temática da cidade, das tecnologias de comunicação, da mobilidade e das novas funções dos lugares e dos territórios, hoje, em meio a fluxos internacionais de informação digital.
Não acredito em fronteiras do conhecimento que não sejam membranas, permeáveis, que sejam, no fundo, mídias. Parto das ciências sociais, bebo na literatura, experimento uma práxis artística, volto as ciências sociais... Não sei bem onde começa um e termina o outro.
Só consigo pensar fazendo várias coisas ao mesmo tempo: minhas fotos, meu blog, meus projetos, como o "Wi-Fi Salvador", o "Ciberflânerie", o "https" (todos estão no meu blog), me ajudam a produzir teoricamente, me fazem produzir outras coisas e assim por diante.
Não há e não deve haver fronteiras que nos prendam na aventura do conhecimento. Fronteiras devem ser “hubs’’ e não prisões. Sou engenheiro de formação, tenho mestrado em política de ciência e tecnologia com ênfase em filosofia da técnica e meu doutorado foi em sociologia. Agora sou professor da comunicação. Como poderia defender fronteiras estanques do pensamento?

“Sur-viv-all’’ nasceu no Canadá e traz embutido no nome a complexidade territorial da cultura da mobilidade. Mas é difícil abstrair o fato de que você é um soteropolitano temporariamente no freezer. O título me remete, assim, à idéia de uma palavra-chave numa determinada locação. Que romance ou que palavra seria a chave do mapeamento de Salvador?
Lemos: Na realidade nasci no Rio, mas estou há muitos anos em Salvador e tenho uma linda filha baiana. Aceito o rótulo com prazer e orgulho. Me sinto desterritorializado, já que não me vejo pertencendo nem a um lugar nem a outro.
Bom, o que me levou a fazer o “Sur-viv-all’’ foi a minha paixão pela literatura e o meu interesse intelectual pelas novas tecnologias. “Sur-viv-all’’ só foi possível por causa do meu olhar estrangeiro (não é à toa que é o primeiro do gênero em Alberta, e talvez no Brasil com GPS writing, mas não saberia afirmar com certeza).
Salvador é mais interna, digerida e não seria fácil para mim fazer o mesmo. Mas tenho conflitos e amores pela cidade e já tinha pensado em fazer um com o meu grupo questionando a idéia da "cidade da alegria". Fizemos o “Wi-Fi Salvador’’ (mapeamento de hotspots wi-fi), mas minha idéia era mapear a alegria (e seu oposto) nas ruas da cidade. Talvez ainda faça isso.
Qual romance seria a chave para o mapeamento de Salvador? Não sei bem, mas o que me vem a cabeça, pela origem, pela malemolência, a astúcia, a força e a criatividade da cidade, talvez seja "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro.
Acho que a palavra que escreveria com um GPS seria "povo", que remete à dimensão cotidiana e impregnante da cidade e, ao mesmo tempo, ao folclore dessa socialização, ao que falta na cidade (e talvez no país como um todo). Acho que em Salvador o que mais tem, e o que mais falta, é "povo".

“Locative media’’ é um dos temas mais quentes do momento. Como tudo que é inflacionado por modismos, implica riscos. Nesse sentido, não me impressiona a quantidade de projetos redundantes que são mais exercícios de “desabstração” do que de mapeamento. No limite, parecem correr atrás daquele fantasma borgeano de criar mapas na escala 1:1, explicitando a obviedade do local, em detrimento da representação (que é sempre multiplicadora de sentidos). Como você vê essa questão e o boom dos “locative media”?
Lemos: Há vários projetos sobre o título de “locative media”. Considero três grandes campos: “anotações urbanas”, “mapeamento e geotags” e “location-based mobile games”. O interessante é que o tema vem de artistas que buscam diferenciar suas ações daquelas de grandes empresas.
Hoje as coisas estão meio misturadas, mas o fenômeno revela formas de apropriação de dispositivos móveis (como celulares, GPS, palms) e de sistemas de publicação disponíveis na Web para projetos "bottom-up". Eles visam repensar o espaço público, a cidade, a produção de conteúdo sobre lugares, o uso da cidade.
No meu entender, o mais interessante é ver como projetos com mídias locativas (informação anexada a lugares e objetos) impedem que caiamos em teses hegemônicas de autores consagrados que afirmam o "fim dos lugares", “o fim do urbano”, a “desmaterialização” e a “desterritorialização” completa do real pelo "virtual", a perda do "sentido de lugar" etc. Acho que o que estamos vendo hoje nesses projetos são usos efetivos dos lugares, criação do que chamo de "territórios informacionais" que redefinem os lugares contemporâneos.
Lugares se modificam com o fluxo informacional. Mas eles não desaparecem. Projetos com mídias locativas não estão em um ciberespaço independente do espaço físico, mas sim na intersecção, tencionando os lugares, criando novos sentidos, novas territorializações, novas formas de controle, novos conteúdos pessoais e comunitários e novos usos do espaço urbano. São, por assim dizer, tendências rapidamente seguidas pelo mercado (companhias de celulares oferecem hoje mapeamento, GPS, micro-blogging, acesso à software sociais etc...).
Sobre Borges, você tem razão, e escrevi recentemente em um artigo que os processos de territorialização com mapas e GPS são exatamente a concretização do microconto de Borges: mapear é, como sempre, controle, criação de territórios. Hoje, com GPS e sensores, a potência informacional faz com que o deslocamento pelo espaço coincida exatamente com percursos por mapas eletrônicos. Assim, andar com um GPS é como andar em um mapa de escala 1:1.

Já se disse que quem não estiver no Google, em alguns anos, não existirá. E o que está fora do Google Map? Estará também condenado a uma espécie de “limbo” da história e da geografia?
Lemos: Sim, como sempre. O que não estava nos mapas dos grandes impérios (Roma, Portugal, Espanha, Grã Bretanha...) não existia e estava condenado ao limbo da história.
O Google Maps e o Google Earth criaram oportunidades gigantescas de aprendizagem, de produção de conteúdo e de mapeamento (com fotos, vídeo, textos...) para qualquer um. Devemos lembra que a produção de mapa e representações sobre um território era exclusiva de técnicos, cartógrafos, engenheiros e burocratas que servem ao poder constituído.
Como falamos anteriormente, esses sistemas de mapas digitais tornou disponível, para todos com acesso à rede, uma possibilidade de produzir conteúdos e mapas sem precedentes na história da humanidade. Com finalidades as mais diversas, esses mapas hoje permitem a pessoas e comunidades criarem histórias e significações autóctones sobre suas realidades, sobre seus “lugares”. Ou seja, é possível produzir histórias sobre os lugares que não são as oficiais, criar sentido além da reprodução oficial. Isso é muito bom.
No entanto, precisamos estar atentos às limpezas e maquiagens do Google. Sabemos que pontos chaves do território americano foram recentemente apagados, que zonas de Bagdá e do Afeganistão foram esteticamente melhoradas, que há lugares que não existem nesses mapas, ou são apenas “pontos”, que há diferenças de definições das imagens dos mapas e que essas diferenças não são neutras etc.
Mais ainda, embora seja gratuito, o sistema não é "open source", e os API (Application Programming Interface, ou Interface de Programação de Aplicativos) que usamos hoje podem nos ser retirados ou cobrados no futuro.
Nada muito novo. Precisamos lembrar que toda construção de mapas é ideológica, que ela esconde poderes e não é de forma nenhuma a "realidade". Como sempre, e não apenas hoje, criar mapas é produzir uma realidade, é criar uma história que se pretende “a” história. No Google Maps ou no Google Earth, ela é tão performática que temos a impressão de ser toda a “realidade”. Não é. Devemos pensar também que a realidade é o que não está no Google.

Publicado em 19/04/2008
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Giselle Beiguelman
É curadora do Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia e professora do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Editora da seção "Novo Mundo", de Trópico. cria e desenvolve projetos experimentais para redes fixas e móveis. Site: www.desvirtual.com

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