o público e a cidade silenciosa
montréal é uma cidade intensa, isso chega a ser um lugar comum. todo mundo tece muitos comentários sobre a gentileza dos montréalenses, sobre a cultura cosmopolita, a vida bilíngue, mas de modo geral as pessoas não dizem muito sobre sua arquitetura, ou dedicam a ela palavras polidas, para não dizer que se trata de um lugar urbano de característica monotonia. nada mais errado. montréal é o anti-espetáculo, no melhor sentido debordiano, por isso sua arquitetura não tem glamour, e isso é bom com força. me explico: cheguei lá no finzinho do inverno, tinha um resto de gelo nos cantos dos gramados. no caminho do aeroporto até minha casa de 17m2, as árvores opacas e despeladas eram o contraponto de uma cidade horizontal, afora o costumeiro downtown norte americano. até que o verão comece, boa parte da vida acontece nos subterrâneos, nos cafés, em studios de yoga e lavanderias nos subsolos dos prédios, inclusive o meu próprio. é uma delícia trafegar por uma arquitetura sem rosto, pura forma, nenhuma imagem, só interior. depois as ruas, ocupadas de gente andando à pé, na chuva insistente e fria da primavera ou sob o céu azul sem uma nuvem - e gelado, gelado sempre.
mas chegou o verão, úmido e tórrido, 28, 34, 38 graus. os prédios viram do avesso, expulsam as pessoas; não dá pra viver dentro por que o ar quente não sai, o vento não sopra, o ar não circula. os parques enchem, os terraços dos cafés também, as madrugadas parecem começo de tarde, pois o sol esconde às 10 da noite. foi no verão que inaugurou a grand bibliothéque. eu já estava quase voltando, mas, como ainda tinha muito trabalho pela frente, então ia pra lá estudar nos fins de semana, sempre chegava no domingo, 3, 4 da tarde, só pra trocar os ares, saía da biblioteca da mg gill, no lado inglês da cidade, andava até o quartier latin, mudava o idioma, era como se o dia começasse de novo. até o mobiliário no café na esquina da UQÁM era diferente dos outros onde se falava inglês. paredes pintadas em tons fortes, mais quentes, mais bagunçados, um pouquinho de nada mais barulhentos- o lugar comum da latinidade.
a biblioteca, vi de cara, era à demeure um grande lugar.poderosa arquitetura de mobilizar os sentidos, mover todo o corpo. é definitiva e vai fazer escola na crítica, tenho certeza. mas o melhor de tudo, é que é usada à beça, e talvez não seja fotogênica o suficiente para ir frequentar as revistas científicas. nada mais montréal, afinal de contas. num domingo de manhã o fluxo de gente indo e vindo para assistir dvds no andar das tvs, era imenso. muitos meninos copiando cds nos laptops, um tráfego de espaço de lazer. espaço público no melhor sentido debordiano. os vãos são estreitos e os pés direito sempre altos. madeira, degraus-bancadas de leitura , arquibancadas-mesa de estudo, conexões wireless e muitas, muitas crianças folheando revistinhas. em mais de uma vez dessas me deu saudade da teo. e pensei o quanto o brasil é injusto com seus habitantes, não os deixando aprender sobre os lugares coletivos, pelos quais não se paga para entrar ou sair.
pois montréal é isso: um trunfo silencioso do cotidiano, lugares que são feitos do seu lado de dentro, guardando alguma vagarosidade. ainda preciso escrever mais sobre isso, é que hoje me deu saudade dos meus domingos canadenses.
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