As linhas da crise - JANIO DE FREITAS

JÁ É HORA de começarmos a separar o joio do joio.
A idéia que está feita da crise na aviação reproduz a própria desordem posta em questão. Fatores alheios entre si estão misturados, tanto no tratamento público da crise como na perplexidade governamental, em tal proporção que o todo fica ininteligível, e as partes, menos abordáveis.
Os aspectos gerais da crise são o ponto de partida possível aqui, para uma olhar com o propósito de ajudar à sua compreensão e debate das possíveis soluções devidas pelo governo. É possível distinguir na crise duas linhas de problemas que se agravam mutuamente, mas têm naturezas diferentes. E, portanto, procedências distintas. Uma dessas linhas é composta por companhias aéreas e aeroportos; a segunda veio de precariedades do controle aéreo e outras atividades de suporte da aviação civil.
Está estabelecido que a desordem nos serviços aéreos tem dez meses, data do choque entre chefiados e chefes no controle aéreo, em seguida à derrubada do avião da Gol pelo Legacy. A desordem, no entanto, vem de muito mais longe, e a progressão foi toda acompanhada pela imprensa. Seu ponto visível mais distante ficou nas turbulências que levaram o conselho da Varig a afastar, em abril de 1995, o presidente da empresa, Rubel Thomas, que assumira cinco anos antes. Para espanto geral, a "nossa Varig" estava sob riscos graves.
Fernando Pinto assumiu e em pouco a Varig exibiu outra vez sua excelência, até que, por motivos nunca explicados, o conselho substituiu o presidente. Enquanto se desenvolveu uma série incessante de quedas e nomeações de novos presidentes, Fernando Pinto, chamado para salvar a TAP, elevou essa empresa portuguesa a progresso extraordinário no negócio mundial de aviação (a ex-crítica TAP foi, no ano passado, pretendente à compra da Varig).
Desde o retorno dos seus desarranjos e por todo o longo estado de coma, até a fase terminal, a empresa aérea dominante, quase absoluta, não deixaria de despejar reflexos muito fortes sobre todo o sistema da aviação comercial brasileira. A cada vôo que a Varig atrasou ou nem pôde fazer, a cada linha que abandonou ou avião que perdeu por venda ou devolução, produziu congestionamento em aeroportos; conturbação nas programações de outras companhias, com a alocação imprevista de passageiros e alteração de rotas; e com a redistribuição de linhas entre empresas que, embora as disputassem, não estavam (e ainda não estão) preparadas para assumi-las em tamanha quantidade e com tão grande intensidade de vôos.
O conceito de horário perdeu-se por aí, as vendas excessivas de passagens (o tal overbooking) banalizaram-se, tudo saiu de ordem no funcionamento das companhias, que tratavam de aumentar as suas frotas o mais depressa possível. O desastroso sistema de conexões foi multiplicado, congestionando ainda mais os balcões de atendimento e dependências dos aeroportos, mas permitindo às companhias lotações mais proveitosas e o corte de vôos que lhes eram problemáticos. Para dar a essa balbúrdia o cenário adequado, a Infraero pôs em obras os aeroportos de Congonhas e Santos Dumont.
Foi sobre tal quadro que incidiu a segunda linha componente da crise aérea: os problemas no controle aéreo, que independiam, nas suas causas e no desenvolvimento, do que se passasse nas companhias aéreas e nos aeroportos. Assim como tudo o que degenerou nestas e nestes, até que ocorresse o choque do Legacy com o avião da Gol, independeu das insuficiências na infra-estrutura do controle aéreo. As duas linhas de problemas vieram a agravar-se mutuamente, mas continuam distintas.
No decorrer de todo o processo desordenador, os aeronautas e seu sindicato produziram estudos e documentos sobre a realidade e as perspectivas, cada vez mais sombrias, da aviação comercial no Brasil. Se o velho DAC, o Departamento de Aviação Civil, devia sair da área militar e ceder o espaço a mais uma agência dos sonhos fernandistas, a Anac nasceu para nada. Ou melhor, para piorar, por ser mais um setor responsável sob acusação de irresponsabilidade. É de suas funções, porém, que podem vir o enquadramento das companhias aéreas e um plano nacional de aviação que reponha ordem e racionalidade em um dos lados da crise. Quando ou se, é outro assunto.

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