a cozinha de frankfurt
Cada um de nós que já tenha projetado um objeto sabe que imaginar possibilidades para um material construtivo só é possível se você o confronta numa determinada demanda no projeto do espaço. O método da arquitetura, entretanto, não é o método da técnica. Método, em arquitetura, é uma reflexão sobre o modo de fazer; e o modo do fazer arquitetônico é o da conjugação de diversos elementos ( estruturais, materiais, estéticos, utilitários), conjugação esta que sempre deve ser ajustada à particularidade da situação em que o projeto se realiza.O caso da Cozinha de Frankfurt é especialmente interessante para ilustrar essa idéia do raciocínio sobre o particular que cabe à arquitetura.
Ao contrário do que parece à primeira vista, a cozinha de Frankfurt, concebida para ser “cozinha-máquina”, é o momento da culminação de uma tradição; melhor dizendo: é a realização moderna de uma função arquitetônica muito antiga, mas somente tornada possível a partir da compreensão e da valorização de uma tradição, num contexto histórico de transformação dessa mesma tradição.
O fato de ter sido concebida por uma mulher está longe de ser casual. Nos anos de 1920 existiu na Alemanha e em certa medida também nos Estados Unidos o que se convencionou chamar “ciência doméstica”. Foi um movimento feminino, que desde o início estabeleceu uma aliança com o Estado e que se transformou numa política prioritária de governo, atendendo à forte representação burguesa e conservadora. As bases deste movimento são as associações de grupos de mulheres que reagiram ao processo de liberação feminina em curso na Europa desde o final do século XIX. A agenda da igualdade política e social era liderada por mulheres da estatura de Rosa Luxemburgo e permitiu à mulher obter educação formal, ou seja, freqüentar a universidade, tornar-se independente social e sexualmente. Mas essa figura feminina parecia hostil mesmo aos defensores dos pensamentos socialista e comunista porque era anárquica: uma mulher que quisesse permanecer solteira, que não tivesse como meta exclusiva da vida cuidar da casa e ter filhos, ameaçava virar o mundo de cabeça para baixo. Uma misoginia velada, cabelos curtos e roupas de corte pouco feminino ameaçavam politicamente a supremacia masculina nas artes, na profissão e em casa. Como resposta a tal ameaça, os socialistas alemães da República de Weimar estabeleceram uma política de “redomesticação feminina”, que exatamente viria refinar a idéia de uma “esfera da mulher”.
Nesse contexto é que se deve entender a modernização das habitações. Tratava-se de, modernizando equipamentos domésticos, tornar moderna a “esfera da dona de casa”, com o que salvava-se, afinal de contas, a família. Mas o que de fato ocorre naquele momento é uma operação para profissionalizar o trabalho doméstico: cuidar da casa deveria significar menos tempo gasto em tarefas diárias entediantes e repetitivas, mas não excluía o modelo familiar, ainda que, nele, o papel feminino fosse redefinido. Nas escolas o curso de economia doméstica era obrigatório para garotas; atividades de babás, enfermeiras, cozinheiras, lavadeiras foram inteiramente normalizados. Era preciso entender a experiência feminina sob o prisma da racionalização de uma forma de trabalho. Funcionava mais ou menos assim: as mulheres tinham o relato, faziam a descrição de suas tarefas, estabeleciam os dados e os arquitetos e os desenhistas industriais reeducavam mulheres, “re-ajustando suas demandas”. O resultado inevitável desse estado de coisas foi a transição de um âmbito subjetivo e portanto personalizado, para outro âmbito objetivo e tecnológico. Formou-se um público burguês consumidor de soluções pré-fabricadas – as mulheres freqüentavam exposições e compravam revistas de design para aprender a cuidar da casa de modo prático. Parecia, então, também inevitável a erosão de uma prática tradicional feminina, em que a experiência espacial doméstica seria substituída por uma outra prática, moderna porque científica.
Em tal cenário, por que o projeto de Frankfurt, de uma “cozinha-máquina” era diferente? Por que ali o projeto do espaço da cozinha é resultado de uma convergência complexa. Em primeiro lugar, o usuário a que destinava a arquitetura mudara: não mais se tratava de projetar para a burguesia, mas para a classe operária. Ou seja, aquele grupo de arquitetos precisou se deslocar de um universo auto-referenciado para imaginar soluções que fossem úteis a um outro universo de vida. Para a cozinha não foram apenas indicados móveis e equipamentos padronizados e racionais. Mesmo que fossem soluções previamente determinadas e oferecidas à classe operária como regra, o projeto, para que fosse exitoso, exigiu não apenas a narrativa das atividades, mas a compreensão dos movimentos das mulheres de uma classe social inferior e de seu modo de lidar com o espaço. A equipe de Margarete Lihotzky, arquiteta responsável pelo desenho, escrutinou cada aspecto do projeto da casa e estudou psicologia, tecnologia de produtos e materiais construtivos e, claro, “ciência doméstica”.
Ou seja, o objeto surgido ali refletiu, na produção do seu espaço, a influência de outros saberes, mas foi um esforço de síntese dessas influências. Lihotzky projeta não para um corpo abstrato, mas para um corpo sexualizado, cuja compreensão ultrapassa a idéia de público-classe social para público-gênero. Aparentemente um contra-senso, a idéia de uma cozinha máquina dependeu da compreensão da tradição geradora daquela função: o corpo feminino, com sua economia própria de gestos, movimentos, idas e vindas naquele lugar concebido para abrigar uma única pessoa, resguardada de outros domínios espaciais tanto da casa como de outra habitações ao redor – segundo a vontade manifesta nos relatos das operárias. Este é o aspecto que substancialmente diferencia a Cozinha de Frankfurt dos similares projetos domésticos de sua época. A experiência que era padronizada ali, experiência assumida como necessária, era a das mulheres, com hábitos corpóreos peculiares, ritmos próprios e referidos a uma forma específica de vida. O que Lihotzky traz ao projeto, anexado ao modus operandi da cultura da habitação, é a compreensão diferenciada do espaço de trabalho para o corpo feminino. A Cozinha de Frankfurt pode ser tomada como emblema de um momento na história da arquitetura em que o raciocínio sobre as premissas concretas do projeto indicam o método do mesmo. É também um momento para entender de que modo as mulheres, como sujeitos históricos específicos, impactam a produção arquitetônica; nesse caso, uma tentativa de conjugar a cultura tradicional de mulheres e o ideal de uma utopia tecnológica e política.
Ao contrário do que parece à primeira vista, a cozinha de Frankfurt, concebida para ser “cozinha-máquina”, é o momento da culminação de uma tradição; melhor dizendo: é a realização moderna de uma função arquitetônica muito antiga, mas somente tornada possível a partir da compreensão e da valorização de uma tradição, num contexto histórico de transformação dessa mesma tradição.
O fato de ter sido concebida por uma mulher está longe de ser casual. Nos anos de 1920 existiu na Alemanha e em certa medida também nos Estados Unidos o que se convencionou chamar “ciência doméstica”. Foi um movimento feminino, que desde o início estabeleceu uma aliança com o Estado e que se transformou numa política prioritária de governo, atendendo à forte representação burguesa e conservadora. As bases deste movimento são as associações de grupos de mulheres que reagiram ao processo de liberação feminina em curso na Europa desde o final do século XIX. A agenda da igualdade política e social era liderada por mulheres da estatura de Rosa Luxemburgo e permitiu à mulher obter educação formal, ou seja, freqüentar a universidade, tornar-se independente social e sexualmente. Mas essa figura feminina parecia hostil mesmo aos defensores dos pensamentos socialista e comunista porque era anárquica: uma mulher que quisesse permanecer solteira, que não tivesse como meta exclusiva da vida cuidar da casa e ter filhos, ameaçava virar o mundo de cabeça para baixo. Uma misoginia velada, cabelos curtos e roupas de corte pouco feminino ameaçavam politicamente a supremacia masculina nas artes, na profissão e em casa. Como resposta a tal ameaça, os socialistas alemães da República de Weimar estabeleceram uma política de “redomesticação feminina”, que exatamente viria refinar a idéia de uma “esfera da mulher”.
Nesse contexto é que se deve entender a modernização das habitações. Tratava-se de, modernizando equipamentos domésticos, tornar moderna a “esfera da dona de casa”, com o que salvava-se, afinal de contas, a família. Mas o que de fato ocorre naquele momento é uma operação para profissionalizar o trabalho doméstico: cuidar da casa deveria significar menos tempo gasto em tarefas diárias entediantes e repetitivas, mas não excluía o modelo familiar, ainda que, nele, o papel feminino fosse redefinido. Nas escolas o curso de economia doméstica era obrigatório para garotas; atividades de babás, enfermeiras, cozinheiras, lavadeiras foram inteiramente normalizados. Era preciso entender a experiência feminina sob o prisma da racionalização de uma forma de trabalho. Funcionava mais ou menos assim: as mulheres tinham o relato, faziam a descrição de suas tarefas, estabeleciam os dados e os arquitetos e os desenhistas industriais reeducavam mulheres, “re-ajustando suas demandas”. O resultado inevitável desse estado de coisas foi a transição de um âmbito subjetivo e portanto personalizado, para outro âmbito objetivo e tecnológico. Formou-se um público burguês consumidor de soluções pré-fabricadas – as mulheres freqüentavam exposições e compravam revistas de design para aprender a cuidar da casa de modo prático. Parecia, então, também inevitável a erosão de uma prática tradicional feminina, em que a experiência espacial doméstica seria substituída por uma outra prática, moderna porque científica.
Em tal cenário, por que o projeto de Frankfurt, de uma “cozinha-máquina” era diferente? Por que ali o projeto do espaço da cozinha é resultado de uma convergência complexa. Em primeiro lugar, o usuário a que destinava a arquitetura mudara: não mais se tratava de projetar para a burguesia, mas para a classe operária. Ou seja, aquele grupo de arquitetos precisou se deslocar de um universo auto-referenciado para imaginar soluções que fossem úteis a um outro universo de vida. Para a cozinha não foram apenas indicados móveis e equipamentos padronizados e racionais. Mesmo que fossem soluções previamente determinadas e oferecidas à classe operária como regra, o projeto, para que fosse exitoso, exigiu não apenas a narrativa das atividades, mas a compreensão dos movimentos das mulheres de uma classe social inferior e de seu modo de lidar com o espaço. A equipe de Margarete Lihotzky, arquiteta responsável pelo desenho, escrutinou cada aspecto do projeto da casa e estudou psicologia, tecnologia de produtos e materiais construtivos e, claro, “ciência doméstica”.
Ou seja, o objeto surgido ali refletiu, na produção do seu espaço, a influência de outros saberes, mas foi um esforço de síntese dessas influências. Lihotzky projeta não para um corpo abstrato, mas para um corpo sexualizado, cuja compreensão ultrapassa a idéia de público-classe social para público-gênero. Aparentemente um contra-senso, a idéia de uma cozinha máquina dependeu da compreensão da tradição geradora daquela função: o corpo feminino, com sua economia própria de gestos, movimentos, idas e vindas naquele lugar concebido para abrigar uma única pessoa, resguardada de outros domínios espaciais tanto da casa como de outra habitações ao redor – segundo a vontade manifesta nos relatos das operárias. Este é o aspecto que substancialmente diferencia a Cozinha de Frankfurt dos similares projetos domésticos de sua época. A experiência que era padronizada ali, experiência assumida como necessária, era a das mulheres, com hábitos corpóreos peculiares, ritmos próprios e referidos a uma forma específica de vida. O que Lihotzky traz ao projeto, anexado ao modus operandi da cultura da habitação, é a compreensão diferenciada do espaço de trabalho para o corpo feminino. A Cozinha de Frankfurt pode ser tomada como emblema de um momento na história da arquitetura em que o raciocínio sobre as premissas concretas do projeto indicam o método do mesmo. É também um momento para entender de que modo as mulheres, como sujeitos históricos específicos, impactam a produção arquitetônica; nesse caso, uma tentativa de conjugar a cultura tradicional de mulheres e o ideal de uma utopia tecnológica e política.
Comments
mas hoje esta configuração não é mais viavel ? o que acha ?