trampoline

Tinha acabado de ouvir uma banda de jazz bem macio, acompanhou dançando devagarinho, um ritmo bom de se deixar levar, é que a noite era quente, e sem a umidade do verão aqui. Já ia embora pra casa, já olhara a entrada da estação procurando adivinhar a quantidade de gente descendo ao mesmo tempo para os trens. Veio das suas costas o som meio mascado, quase igual ao dos aparelhos de som portáteis em quartos de adolescentes. Do outro lado da calçada sob um poste de luz um rumor, umas dez pessoas, alguns carrinhos de bebê, inacreditáveis mães com seus pequenos bebês ouvindo música pelas ruas afora, quase onze da noite. Resolveu se aproximar. Um rapaz magro, pequeno e forte abria algo parecido com uma cama elástica azul-escuro, sob a luz da rua. Achou que fosse mais outro povo mambembe, à cata das moedas dos turistas, dos moradores, das pessoas que têm trabalho e dinheiro fixo. Nunca soube explicar por que parou ali, mas ficou para olhar. Eram duas pessoas, um homem e uma mulher, ela também pequena, os cabelos descoloridos, forte como ele e não exatamente magra. Nunca conseguiu se lembrar e dizer em que momento foi tragada pela cena que começava a se desenrolar, talvez quando tenha se dado conta da música que fazia as vezes de trilha sonora. Tocava uma música profundamente triste, com a billie holiday cantando, não fazia sentido. Eles riam muito, agiam como palhaços para atrair os olhos das pessoas que vagarosamente iam se juntando ao redor, eram palhaços às gargalhadas, mas desempenhavam sua acrobacia com um bem disfarçado desespero. Desde a luta para abrir a cama, quando às vezes ela ficava presa nos elásticos, noutras era ele quem caía no vão que fazia a cama novamente se fechar. E para sair do fosso dessas armadilhas, um puxava o outro, por um dedo, pelas orelhas, numa força improvável para trazer o outro à tona, todo mundo rindo deles. Finalmente colocaram a cama estável e deram saltos incríveis, um a cada vez, arrancando ahs e ohs das crianças, dos garotos e das meninas ao redor, dos senhores com suas esposas que à essa altura rodeavam o lugar. Sem qualquer transição, eles esquecem da cama e se agarram um ao corpo do outro no chão, um testa o peso do outro, em cima dos ombros. Não toca mais nenhuma música. Ela desce pelas costas dele com tamanha agilidade que a qualquer um ocorre que sim eles são um casal. E então tudo fica desconcertado naquela dança de quermesse. Encaixes dos pés, no rosto. Ele se afasta dela, ele não quer mais ser tocado, ela corre pra ele, pendura-se em sua cintura, ele a empurra pra longe e de novo a canção triste da billie holiday. Ela rola sobre o asfalto, apenas parece se machucar, debocha dele com uma voz estridente, volta rapidamente e salta sobre seus ombros, ficando em pé, ele atônito quer se livrar, gira uma, duas vezes, ele não se solta. Ele tenta lançá-la sobre a cama, ela cai mas não solta os pés dos ombros dele, seus pés parecem ventosas sugando os ombros dele pondo-se de novo e imediatamente de pé , ereta e ainda em cima dos ombros. São dois que dançam por que fazem amor, mas o que coreografam é uma comunhão fora do lugar, a de ir embora. Eu não vou pro inferno, eu não iria tão longe por você . Eu não vou pro céu também, eu não sou tão bom assim. Ele se enfurece, mas desliza suavemente as mãos pelos braços fortes dela, ela se encolhe, toda a platéia hipnotizada com os movimentos belos e arriscados, mas algo escuro por trás dos saltos não pode ser visto, algo muito rude pode apenas ser ouvido naquela melodia triste. Ela põe um pé no rosto dele, tenta submetê-lo à força do seu corpo pequeno, ele cai no asfalto e rasteja pra baixo dela, agarra seu sexo, grita duas palavras incompreensíveis, todo mundo ri, eles não. Eu estou misturada aos seus livros, seus discos. De pé, ele coloca sua mão enorme sobre o rosto dela, é a vez dela se afastar, mas agora a mão é que é uma ventosa, uma sanguessuga, eles não conseguem se separar. Eu vou estar em tudo que você vê. Vou entrar pela sua roupa. Ele corre para alcançá-la, abraça suas pernas, sobe por seu corpo, ela pelo corpo dele. Numa fração de segundo e num resto de fôlego ela explica à platéia que é disso que trata o circo: de correr riscos. Mas, naquela noite quente, exalando uma tristeza adocicada, como cheiro forte de tabaco, não, não é só circo do que se trata. Era sobre a intimidade e o perigo aquela noite. Sobre amalgamar seu corpo ao de outro com tamanha entrega que os mais instáveis movimentos em conjunto parecem ser abraços. Ela saltava no vazio, ele aparava seu pulo, e a trazia para o colo, para depois repelir com a força de quem diz, vá, agora, saia por aquela porta. Ela olhava seus olhos por alguns instantes para calcular a distância, mas podia certamente saltar de olhos fechados sobre seu pescoço, envolvê-lo pelas pernas, gargalhar de novo, e berrar numa voz grave, venha me rever, estou refeita, creia. Viravam de cabeça para baixo, primeiro um, depois o outro. E de novo, e de novo. Eram imãs para os olhos de quem via, um teatro cru, carregado de uma estranha harmonia, a que rompe a sutileza quando se está muito perto, tem uma flauta dissonante na canção, mais alta que os outros instrumentos, afora um violino meio fora do lugar. Uma coreografia sem nexo, sem tema, longa, mas carregada de tantas coisas a que nunca damos nomes. Lençóis onde dormiram um casal por tanto tempo, que o cheiro do corpo nunca mais vai sair. De dentro dos olhos, o mesmo choro de tantos dos seus dias aqui e sempre incontrolável. Inevitável. Quanta proximidade é preciso para dar a duas pessoas tamanha precisão de movimentos conjuntos, casados e no fim aquilo era um lamento vestido em força e agilidade. Seu corpo melhora o meu. Ele gira, tão rápido, eles voltam para a cama, são saltos altíssimos, os dois ao mesmo tempo, se abraçam lá no alto, a música vai terminando, eles não, o único som que os acompanha é o da respiração das pessoas à volta, de resto um silêncio que emana deles dois. Não há sequer um passo em falso, eles se equilibram mutuamente e por isso podem dançar a distância e saltar no vazio do afastamento. De um modo estranho tem a maior intimidade que se pode experimentar, seu corpo continua no movimento do outro, eu giro, você gira no sentido contrário, um deslocamento da mesma massa, que nunca terá fim. Por que chegaram ao final, ela dá sua mão a ele, por que estão exaustos, ele apenas fica parado a seu lado, separados exceto pelas mãos entrelaçadas. Ela dispara uma falação absurda, agradece a audiência em quebecois, nunca francês, despede-se da noite. Não soltam a mão um do outro, o tempo parou naquela pouco mais de meia hora.Terminou seu show, os aplausos não afastam os vestígios de sexo no ar,

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