Professor Elvan Silva
O Romantismo alemão do Século XIX nos legou o conceito de Reflexionsmedium, o qual designava a “qualidade da obra de arte de proporcionar o conhecimento crítico”. Fiquei por muitos dias com esse termo na cabeça, desde que soubera do falecimento do Professor Elvan Silva. Procurei na estante o lugar onde estavam seus livros, abri alguns para reler trechos assinalados; me lembrei muito daquela figura imponente, algo rude, de pé à porta de sua casa na primeira vez em que o encontrei em Porto Alegre. Havia acabado de ler o seu matéria, idéia e forma, descoberto quase por acaso numa livraria universitária. Graças a um amigo comum, telefonei a ele para saber onde conseguiria um outro título, a forma e a fórmula, que nenhum livreiro localizava. Em dois minutos de conversa ele disse ao Cícero para passarmos em sua casa, pois tinha um volume. E lá estava ele, à porta, o livro na mão, direto e sem quaisquer mediações. Agradeci pelo livro presenteado, lendo rapidamente a dedicatória polida: “à colega Rita de Cássia, com meus cumprimentos. Seis de julho de 1996, Elvan”. Mais tarde conversaríamos por cartas, até que ele veio à PUC para uma aula magna; mas a essa altura seus textos eram referência certa nas disciplinas de fundamentos e história nos cursos de arquitetura da cidade.
Todos aprendemos muito com o professor Elvan: quem o leu, quem o acompanhou nas visitas que passou a fazer a Belo Horizonte, quase sempre respondendo gentilmente a convites acadêmicos, quem dividiu com ele longos almoços. Todos pudemos discordar dos seus tradicionalismos, saudar sua atividade militante nos órgãos representativos da profissão, ou criticar um ou outro aspecto de seu pensamento, mas era disso que se tratava: alguém pensando arquitetura, com seus próprios princípios fortemente defendidos.
Seus textos demarcam um terreno importante na teoria brasileira da arquitetura, pois, num misto de hermenêutica e história, são realização consistente de crítica de arquitetura. Vale integralmente ali - e ainda hoje - o que os românticos, no distante mundo oitocentista europeu, afirmavam: toda crítica inclui o conhecimento de seu objeto e exige uma caracterização da teoria do conhecimento do objeto que está em sua base. No esforço do conceito a construir-se nos textos, o professor Elvan colocava a arquitetura como medium de reflexão, não apenas das atividades envolvidas na geração do ambiente construído, mas, sobretudo, dos novos temas que se propagaram à cultura arquitetônica com o desenvolvimento do capitalismo e que estão, paradoxalmente, “aquém e além da arquitetura”.
No núcleo de matéria, idéia e forma há uma definição de arquitetura que exatamente demonstra sua preocupação em remeter estudantes, arquitetos e professores ao mundo da práxis: “arquitetura é a manifestação cultural materializada na modificação intencional do ambiente, para adequá-lo ao uso humano, através da produção de formas concretas habitáveis imóveis. A concretitude das formas arquitetônicas é tão óbvia que não deveria suscitar discussão. No entanto, alguns raciocínios negligenciam este aspecto, e outros sobre ele tergiversam, ignorando a especificidade existencial dessas formas.” (...) Afirmamos e reafirmamos que a primeira evidência ontológica deste fenômeno é sua condição de produto da cultura, (...) no âmbito da ação coletiva.”
Das Ciências Sociais ele trouxe à sua teoria os elementos de uma hermenêutica: “a arquitetura desempenha um papel hermenêutico, na medida em que age como interpretação de contextos históricos e sócio-culturais.” Elvan Silva entendia - em concepções herdadas de Gadamer e Boudon, mas também de Giulio Carlo Argan - que o projeto de arquitetura, de muitos modos, age como interpretação de mundo, e o que o arquiteto realiza é um “ato de descrição da sociedade” – o que ele comparava à atitude do historiador, no que tange a escolha de um objeto e ao tratamento a ele dado.
Entretanto, o que se pode verificar terminadas as leituras de dois de seus últimos ensaios, é que a cada dia se aproximava mais da formulação definitiva em matéria que o preocupava desde o início de sua carreira docente: dar ao texto da crítica o estofo de uma teoria do conhecimento arquitetônico. Talvez por isso tenha me lembrado tanto do termo dos românticos de Jena: para eles, toda crítica era um modo transformador de refletir sobre uma forma, e a teoria do conhecimento de um objeto é sempre determinada pelo esforço de descobrir o significado do conceito de reflexão para o próprio objeto.
Intelectual e mestre de enorme valor, cuja produção nunca cessou até o fim de sua vida, em tarefas de orientação de alunos, ou em suas aulas e palestras, o professor Elvan fará imensa falta às gerações de arquitetos que com ele conviveram. Para as gerações que virão, espero que saibam desfrutar dos seus ensinamentos, contidos em valiosos textos, por eles aguardando nas bibliotecas de nossas escolas.
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